sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Explicações possíveis da heteronímia

Vários caminhos convergentes, assinaláveis nas prosas inéditas, nos levam a explicações possíveis da heteronomia - como se a pluralidade estivesse realmente no cerne do “caso” literário de Fernando Pessoa e a consciência disso manejasse os fios do seu pensamento.

Eis algumas dessas explicações:

* * A constituição psíquica de Pessoa, instável nos sentimentos e falho de vontade, teria gerado a multiplicação em personalidades ou personagens do drama em gente.

Pessoa explica o aparecimento dos heterónimos dizendo que a origem destes reside na sua histeria, provavelmente histeroneurastenia, logo numa “tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação”.

Vários fragmentos das Páginas Íntimas atendem “à dispersão do eu”.

* * A qualidade de poeta de tipo superior levá-lo-ia à despersonalização. Com efeito, na concepção de Fernando Pessoa, segundo um fragmento inédito, há quatro graus de poesia lírica e no cume da escala, onde ele se coloca, o poeta torna-se dramático por um dom espantoso de sair de si.

No segundo grau, “o poeta ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não já porque não sente, mas porque pensa que sente, a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecâmara da poesia dramática, na sua essência íntima. O temperamento do poeta, seja qual for, está dissolvido pela inteligência. A sua obra é unificada só pelo estilo, último reduto da sua unidade espiritual, da sua coexistência consigo mesmo.

“O quarto grau da poesia lírica é aquele muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda, mas igualmenta imaginativo, entra em plena despersonalização.

Não só sente, mas vive os estados de alma que não tem directamente, supondo que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente, avança ainda um passo na escala da despersonalização.

Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos tenderão a definir, para ele, uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente.

Não se detém Pessoa precisamente no limiar do seu caso excepcional de poeta múltiplo, autor de autores?

A heteronimia seria o termo último de um processo de despersonalização inerente à propria criação poética e mediante o qual Pessoa estabelece uma axiologia literária.

O poeta será tanto maior quanto mais intelectual, mais impessoal, mais dramático, mais fingidor - é o sentido pleno da “Autopsicografia”.

O progresso do poeta dentro de si próprio, realiza-se pela autoria sobre a sinceridade, pela conquista (lenta, difícil), da capacidade de fingir: “A sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem de vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas, pode levar o espírito a esta culminância.

A alquimia poética pressupõe o aniquilamento da sinceridade humana, um longo tratamento das sensações como ingredientes. O génio é uma alquimia. O processo alquímico é quadrúpulo: 1) putrefacção; 2) albação; 3) rubificação; 4) sublimação.

Deixam-se primeiro apodrecer as sensações, depois de mortas embranquecem-se com a memória; em seguida rubificam-se com a imaginação; sublimam-se pela expressão.

Exprimir poeticamente significa fingir.

* * A qualidade de português levaria o poeta a despersonalizar-se, a desdobrar-se em vários.

“O bom português é várias pessoas - reza um fragmento inédito. Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim - Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa e quantos mais haja havidos ou por haver”.

Se um indivíduo deve despersonalizar-se para seu progresso interior, uma Nação deve desnacionalizar-se - e esta é em particular a vocação portuguesa.

O ideal que Pessoa inculca a Portugal, é consequentemente o que se propõe a si próprio: “Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa” - o pluralismo, o politeísmo.

* * A multiplicidade do escritor seria o produto necessário de uma nova fase de civilização - fase que Fernando Pessoa caracteriza ao explicar o Orfeu e o sensacionismo dum ângulo sociológico.

A decadência da fé, quebra de confiança na ciência, a complexidade de opiniões traduz-se pela ânsia actual de “ser tudo de todas as maneiras”.

A poesia poderá entender-se também como resposta a um estado colectivo de crise, mas em sentido diferente, isto é, como antídoto, como bálsamo espiritual.

Caeiro, libertador imaginário, um remédio (provisório) para a dor de pensar de que sofre Pessoa ortónimo, uma fuga.

Pessoa ter-se-ia dividido para se compensar.

Heteronimia seria um modo de suprir a carência, verificada na época, de personalidades superiores, e em especial de grandes personalidades na literatura portuguesa: “Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se ele só em literatura?”.

Texto retirado na www.ufp.pt

Nenhum comentário:

Postar um comentário